O Mundo num Cadinho: O Espaço Cabo-Verdiano nos Séculos XV-XVI

Estrategicamente localizadas na região do Trópico de Cancêr, as ilhas de Cabo Verde tornaram-se desde o início da sua ocupação um atrativo entreposto comercial e uma escala náutica de apoio às navegações no Atlântico.

O arquipélago de Cabo Verde começou por fazer parte de uma pequena área do Atlântico, que o ligava à Península Ibérica, e ao litoral africano, circunscrito á região que ia do Senegal até à Serra Leoa. Mas, em menos de 40 anos era escala de uma carreira marítima que circundava o continente africano e atingia a Índia. Mais vinte anos passados, contactava regularmente a América Central e pouco depois, por ali passava a articulação dos dois impérios ultramarinos peninsulares e a afirmação das potencialidades africanas para a formação do mundo atlântico.

O primeiro dado importante a reter é o da rapidez do estabelecimento de um modelo de circuitos comerciais, interdependentes, que uniam a costa da Guiné a Santiago e esta ilha aos portos europeus e americanos, transformando-a num importante entreposto atlântico. Homens, produtos e informações do mundo cruzavam-se e germinavam neste cadinho de terra tropical situado no atlântico.

O arquipélago chegou à História dos Homens em 1460 e no seu primeiro século começou por presenciar o alargamento espacial vertiginoso das navegações de longo curso e da nova imagem do planeta que elas proporcionaram. Como ponto estratégico cuja importância para o Atlântico oscilou ao sabor de muitos interesses, por aqui passaram notícias, ambições, riquezas, ruína, morte, destruição, mas também aqui surgiu capacidade de recuperação endógena e de iniciativa no isolamento.

A experiência colonial de Cabo Verde, onde todos os povoadores eram estranhos, desempenhou um papel decisivo no futuro da expansão portuguesa, já que o arquipélago foi o laboratório onde se experimentaram novas formas de colonização, novas relações sociais e novas vivências culturais.

No arquipélago caboverdiano estabeleceu-se uma sociedade esclavagista, na qual a exploração contínua do trabalho do escravo negro constituía a base de suporte da estrutura económica e social.

Foi aí também que o escravo se transformou na mercadoria fundamental de exportação a longa distância, sustentando com os lucros da sua venda todo o esforço económico do povoamento do arquipélago e da administração civil e eclesiástica necessárias para o seu estabelecimento e controlo. Daí decorre também a emergência de uma elite colonizadora que perfaz todo o seu ciclo em cerca de um século e meio, ciclo que virá a reproduzir-se em parte, em maior escala e na longa duração, nas terras brasileiras.

Foi neste espaço insular que a administração régia experimentou os meios e a forma de ordenação e controlo de um espaço longínquo, recém-povoado e de um porto comercial intercontinental devidamente equipado e funcional.

Foi nestas ilhas atlânticas que surgiu o primeiro centro urbano colonial nos trópicos, a vila e mais tarde cidade da Ribeira Grande, espaço dominado por reinóis, onde a Câmara Municipal exercia o poder local, progressivamente cada vez mais participado pelos "filhos da terra" (mestiços).

E, finalmente, foi aqui que nasceu do encontro de dois Mundos, o Europeu e o Africano, uma nova sociedade sobre todos os pontos de vista, desde o físico ao cultural, atingindo mesmo o religioso: a sociedade crioula, contributo fundamental para a construção do Mundo Atlântico. Digamos que a participação dos africanos na feitura do Mundo Atlântico tem aqui o seu laboratório que antecede outras distintas experiências.

Em Cabo Verde, espaço periférico, longínquo, diferente e desconhecido não podemos esquecer que os portugueses estavam, pela primeira vez, nos trópicos.

Para viabilizar um povoamento sistemático foi necessário conceder compensações comerciais e fiscais aos europeus que se aventurassem a instalarem-se em Cabo Verde. Mas, no sentido de fixar os homens à terra, explicitou-se ainda a obrigatoriedade de povoar e de produzir bens localmente.

Neste "pequeno Novo Mundo" tudo precisava ser inventado. Foi preciso criar uma terra para viver, criar condições depressa e sem precedentes.

O local, o específico, o interesse interno teve de ser criado aqui desde o ponto zero. Toda a população era estrangeira, recém-chegada e inexperiente. A historiografia tem falado, desde há anos, na "invenção dos arquipélagos". Pois bem, aqui tudo foi inventado a partir de experiências prévias exógenas de europeus e de africanos.

A sociedade insular nasce assim dicotómica, composta por dois grandes estratos: o primeiro grupo, numericamente minoritário, era constituído por reinóis portugueses, castelhanos e genoveses provenientes de origens sociais diversas.

O segundo estrato, o dos escravos, trazidos compulsivamente da Costa da Guiné pelos "moradores" da ilha de Santiago, representava a maioria da população, a vasta camada subjacente.

O papel exercido por estas duas camadas principais na estruturação da sociedade das ilhas apresentou características e teve um peso muito diferente consoante as épocas. Foi o grupo dos europeus, aquele que impôs o modelo da sociedade insular, enquanto os escravos não tiveram outra opção senão o de serem Integrados pela força nesta comunidade. Africanos, trazidos para as ilhas na condição de escravos, estavam impossibilitados de reproduzir no novo meio a organização social de origem. A escravatura a que foram sujeitos nivelou-os, atenuando assim as heterogeneidades sociais e culturais específicas das diversas sociedades continentais de origem.

A estrutura social dos Europeus foi, pelo contrário, transferida apenas com a necessária adaptação, para a recém-criada "colónia" estabelecendo no seu seio uma estratificação social semelhante à do Reino6.

O modelo social foi imposto pelos Europeus, ficou, no entanto, de imediato subvertido pela componente principal daquela sociedade, a escravaria, que, ao ser integrada nela como força de trabalho, automaticamente a condicionou e marcou.

No percurso de mutação da sociedade insular o esbatimento dos contrastes sociais começou com a mestiçagem, mas firmou-se com a diminuição significativa do número de reinóis, como moradores permanentes. A decadência do comércio externo já não atraia os capitalistas reinóis.

A segunda década do século XVII e especificamente o ano de 1613 marcam o início de uma rutura na sociedade local refletida em primeira mão no descalabro da vida urbano-mercantil da Ribeira Grande. Isto não esquecendo as feridas profundas que as secas e as consequentes fomes (1609-1611) fizeram nos habitantes das ilhas.

Efetivamente a escassez dos tratos dos moradores da Ribeira Grande com a costa da Guiné e principalmente o desvio do tráfico de navios do porto da cidade não tardaram a repercutir-se em fortes e rápidas mudanças sociais: mercadores e homens de negócios deixam de habitar ou de se deslocar à ilha de Santiago; as mercadorias e os produtos agrícolas dos moradores deixaram de ter vazão; houve um forte decréscimo da renovação dos vizinhos e moradores brancos da cidade e da ilha; rarearam os escravos para o negócio e a agricultura dava muito pouco rendimento, e escasseava, igualmente, o dinheiro corrente na ilha, pelo que os seus moradores chegaram a propor que os panos da terra servissem como moeda de troca nas transações internas.

A composição da Câmara Municipal da Ribeira Grande refletia diretamente as mudanças sociais. Até ao final do século XVI o município fora dirigido por “brancos honrados". À sua chegada ao arquipélago (1604) os jesuítas ainda observaram que na cidade havia "muita gente de Portugal e na Camara raramente entrava crioulo...". Mas, em 1617, já apresentavam como sintoma da  mudança na sociedade urbana a composição do Conselho camarário: " e chegou a  terra a tais termos que quantos ha hoje na Câmara são crioulos...". Anos mais tarde, confírmava-se a crioulização do estrato dominante da ilha de Santiago em geral: "A gente desta Ilha é mui pouca, e se entre todos os moradores dela se acham vinte homens da governança que de todo sejam brancos não será muito”. A situação económica e social na cidade da Ribeira Grande refletia o isolamento a que estava sendo votada, afugentando homens, dinheiro e crédito.

Tal situação deu oportunidade aos "filhos da terra", principalmente aos mestiços, de ocuparem os lugares cimeiros na economia interna e na administração local. E tudo isto se passou em uma, quando muito em duas, gerações.

Assim, a sociedade dicotómica de senhor/escravo, europeu/africano progrediu para o fortalecimento de uma terceira força endógena, os "filhos da terra"' É ainda neste século que se atinge uma sociedade mais homogénea com características específicas e verdadeiramente novas: a sociedade caboverdiana.

A fragilização das relações comerciais e das ligações marítimas com o reino dá azo á afirmação de uma auto-organização interna e à introversão de uma sociedade, em que o elemento reinol era cada vez mais raro, reduzido aos representantes dos poderes administrativos, judiciais ou eclesiásticos e pouco mais. Os naturais da terra não tinham acesso ao governo central já que não possuíam aí parentes e amigos altamente colocados que lhes abrissem as portas e proporcionassem influências. Aliás, os próprios funcionários judiciais e até governadores tinham cada vez mais dificuldade em se imporem numa sociedade que não recebia atenção do governo central.

A gestão local era uma fórmula a que repetidamente se teve de lançar mão em setores tão delicados como a administração eclesiástica.

Muitas vezes os Bispos demoravam a empreender a viagem desde Lisboa até uma diocese pouco atrativa. As vagaturas chegavam a durar anos.

Para podermos compreender o ritmo acelerado e a capacidade de se auto-organizar no percurso que originou a sociedade crioula de Cabo Verde, precisamos de dar o devido peso ao aspeto religioso. Senhor e escravo, brancos e negros, homens que comiam trigo e outros que comiam milho, também professavam originalmente credos religiosos diferentes.

Uma sociedade que promoveu o filho ilegítimo do senhor e da escrava, que fez entrar na Câmara e na administração o mestiço, que uniformizou os hábitos alimentares ancestrais, que viu reduzidos os contactos exteriores a todos os habitantes, fossem urbanos ou rurais, também abraçou crenças, moldou comportamentos, envolveu os próprios ministros das religiões presentes no território.

Ali assistiu-se, em primeira mão, a uma conversão em dois sentidos: do africano ao cristianismo e a do europeu aos rituais africanos. Tratava de conversões que compreendiam uma larga margem de permanência da crença original, o que ainda facilitava mais o convívio quotidiano. Uma parte significativa da população dispunha de duas vias para o sagrado: o padre católico, representante da religião oficial dos reinóis, e o "feiticeiro", sacerdote/médico africano jabacouce apesar de não ser reconhecido pelas autoridades coloniais, era uma figura  muito presente na sociedade local.

A redução das ligações com o Reino,  o   abandono   da   cidade, enfraquecimento das estruturas institucionais civis e religiosas, a ausência de  reinóis abastados tenderam a diluir as diferenças e intensificam a mestiçagem física e cultural. Os contactos entre as religiões estreitam-se, as concessões de parte a parte tornam-se possíveis e a interpenetração dos rituais foi tolerada pelo clero, ele próprio participante das duas culturas.

A promoção do clero local representou ao nível da religião a via mais direta para a crioulização. A composição do clero caboverdiano iria refletir a mestiçagem da sociedade laica. Nas últimas décadas do século XVI, assistimos á rápida africanização do clero. Para além de constituir um meio de ascensão social, por excelência dos “filhos da terra” era também uma solução prática para compensar a falta de clérigos reinóis na diocese.

Em meados do século XVII, o traço dominante do clero caboverdiano era a sua composição mestiça e negra. O testemunho do padre António Vieira deixou para a posteridade a imagem conjuntural mais marcante de uma estrutura fora do seu tempo, estrutura essa que, noutras partes, levaria séculos a ocorrer: "Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais".

A história das ilhas de Cabo Verde é, com efeito, um terreno de grande interesse para o estudo da presença europeia, e designadamente portuguesa, nos Trópicos. Aqui tudo partiu do zero, de terreno virgem, aqui foi possível acompanhar o crescimento e o desenvolvimento de uma sociedade, da sua organização politica e da sua economia a partir do início, é sem dúvida um processo apaixonante seguir estes homens e a sua adaptação aos Trópicos desde o dia 1 da sua existência.

Estrategicamente localizadas na região do Trópico de Cancêr, as ilhas de Cabo Verde tornaram-se desde o início da sua ocupação um atrativo entreposto comercial e uma escala náutica de apoio às navegações no Atlântico.

O arquipélago de Cabo Verde começou por fazer parte de uma pequena área do Atlântico, que o ligava à Península Ibérica, e ao litoral africano, circunscrito á região que ia do Senegal até à Serra Leoa. Mas, em menos de 40 anos era escala de uma carreira marítima que circundava o continente africano e atingia a Índia. Mais vinte anos passados, contactava regularmente a América Central e pouco depois, por ali passava a articulação dos dois impérios ultramarinos peninsulares e a afirmação das potencialidades africanas para a formação do mundo atlântico.

O primeiro dado importante a reter é o da rapidez do estabelecimento de um modelo de circuitos comerciais, interdependentes, que uniam a costa da Guiné a Santiago e esta ilha aos portos europeus e americanos, transformando-a num importante entreposto atlântico. Homens, produtos e informações do mundo cruzavam-se e germinavam neste cadinho de terra tropical situado no atlântico.

O arquipélago chegou à História dos Homens em 1460 e no seu primeiro século começou por presenciar o alargamento espacial vertiginoso das navegações de longo curso e da nova imagem do planeta que elas proporcionaram. Como ponto estratégico cuja importância para o Atlântico oscilou ao sabor de muitos interesses, por aqui passaram notícias, ambições, riquezas, ruína, morte, destruição, mas também aqui surgiu capacidade de recuperação endógena e de iniciativa no isolamento.

A experiência colonial de Cabo Verde, onde todos os povoadores eram estranhos, desempenhou um papel decisivo no futuro da expansão portuguesa, já que o arquipélago foi o laboratório onde se experimentaram novas formas de colonização, novas relações sociais e novas vivências culturais.

No arquipélago caboverdiano estabeleceu-se uma sociedade esclavagista, na qual a exploração contínua do trabalho do escravo negro constituía a base de suporte da estrutura económica e social.

Foi aí também que o escravo se transformou na mercadoria fundamental de exportação a longa distância, sustentando com os lucros da sua venda todo o esforço económico do povoamento do arquipélago e da administração civil e eclesiástica necessárias para o seu estabelecimento e controlo. Daí decorre também a emergência de uma elite colonizadora que perfaz todo o seu ciclo em cerca de um século e meio, ciclo que virá a reproduzir-se em parte, em maior escala e na longa duração, nas terras brasileiras.

Foi neste espaço insular que a administração régia experimentou os meios e a forma de ordenação e controlo de um espaço longínquo, recém-povoado e de um porto comercial intercontinental devidamente equipado e funcional.

Foi nestas ilhas atlânticas que surgiu o primeiro centro urbano colonial nos trópicos, a vila e mais tarde cidade da Ribeira Grande, espaço dominado por reinóis, onde a Câmara Municipal exercia o poder local, progressivamente cada vez mais participado pelos "filhos da terra" (mestiços).

E, finalmente, foi aqui que nasceu do encontro de dois Mundos, o Europeu e o Africano, uma nova sociedade sobre todos os pontos de vista, desde o físico ao cultural, atingindo mesmo o religioso: a sociedade crioula, contributo fundamental para a construção do Mundo Atlântico. Digamos que a participação dos africanos na feitura do Mundo Atlântico tem aqui o seu laboratório que antecede outras distintas experiências.

Em Cabo Verde, espaço periférico, longínquo, diferente e desconhecido não podemos esquecer que os portugueses estavam, pela primeira vez, nos trópicos.

Para viabilizar um povoamento sistemático foi necessário conceder compensações comerciais e fiscais aos europeus que se aventurassem a instalarem-se em Cabo Verde. Mas, no sentido de fixar os homens à terra, explicitou-se ainda a obrigatoriedade de povoar e de produzir bens localmente.

Neste "pequeno Novo Mundo" tudo precisava ser inventado. Foi preciso criar uma terra para viver, criar condições depressa e sem precedentes.

O local, o específico, o interesse interno teve de ser criado aqui desde o ponto zero. Toda a população era estrangeira, recém-chegada e inexperiente. A historiografia tem falado, desde há anos, na "invenção dos arquipélagos". Pois bem, aqui tudo foi inventado a partir de experiências prévias exógenas de europeus e de africanos.

A sociedade insular nasce assim dicotómica, composta por dois grandes estratos: o primeiro grupo, numericamente minoritário, era constituído por reinóis portugueses, castelhanos e genoveses provenientes de origens sociais diversas.

O segundo estrato, o dos escravos, trazidos compulsivamente da Costa da Guiné pelos "moradores" da ilha de Santiago, representava a maioria da população, a vasta camada subjacente.

O papel exercido por estas duas camadas principais na estruturação da sociedade das ilhas apresentou características e teve um peso muito diferente consoante as épocas. Foi o grupo dos europeus, aquele que impôs o modelo da sociedade insular, enquanto os escravos não tiveram outra opção senão o de serem Integrados pela força nesta comunidade. Africanos, trazidos para as ilhas na condição de escravos, estavam impossibilitados de reproduzir no novo meio a organização social de origem. A escravatura a que foram sujeitos nivelou-os, atenuando assim as heterogeneidades sociais e culturais específicas das diversas sociedades continentais de origem.

A estrutura social dos Europeus foi, pelo contrário, transferida apenas com a necessária adaptação, para a recém-criada "colónia" estabelecendo no seu seio uma estratificação social semelhante à do Reino6.

O modelo social foi imposto pelos Europeus, ficou, no entanto, de imediato subvertido pela componente principal daquela sociedade, a escravaria, que, ao ser integrada nela como força de trabalho, automaticamente a condicionou e marcou.

No percurso de mutação da sociedade insular o esbatimento dos contrastes sociais começou com a mestiçagem, mas firmou-se com a diminuição significativa do número de reinóis, como moradores permanentes. A decadência do comércio externo já não atraia os capitalistas reinóis.

A segunda década do século XVII e especificamente o ano de 1613 marcam o início de uma rutura na sociedade local refletida em primeira mão no descalabro da vida urbano-mercantil da Ribeira Grande. Isto não esquecendo as feridas profundas que as secas e as consequentes fomes (1609-1611) fizeram nos habitantes das ilhas.

Efetivamente a escassez dos tratos dos moradores da Ribeira Grande com a costa da Guiné e principalmente o desvio do tráfico de navios do porto da cidade não tardaram a repercutir-se em fortes e rápidas mudanças sociais: mercadores e homens de negócios deixam de habitar ou de se deslocar à ilha de Santiago; as mercadorias e os produtos agrícolas dos moradores deixaram de ter vazão; houve um forte decréscimo da renovação dos vizinhos e moradores brancos da cidade e da ilha; rarearam os escravos para o negócio e a agricultura dava muito pouco rendimento, e escasseava, igualmente, o dinheiro corrente na ilha, pelo que os seus moradores chegaram a propor que os panos da terra servissem como moeda de troca nas transações internas.

A composição da Câmara Municipal da Ribeira Grande refletia diretamente as mudanças sociais. Até ao final do século XVI o município fora dirigido por “brancos honrados". À sua chegada ao arquipélago (1604) os jesuítas ainda observaram que na cidade havia "muita gente de Portugal e na Camara raramente entrava crioulo...". Mas, em 1617, já apresentavam como sintoma da  mudança na sociedade urbana a composição do Conselho camarário: " e chegou a  terra a tais termos que quantos ha hoje na Câmara são crioulos...". Anos mais tarde, confírmava-se a crioulização do estrato dominante da ilha de Santiago em geral: "A gente desta Ilha é mui pouca, e se entre todos os moradores dela se acham vinte homens da governança que de todo sejam brancos não será muito”. A situação económica e social na cidade da Ribeira Grande refletia o isolamento a que estava sendo votada, afugentando homens, dinheiro e crédito.

Tal situação deu oportunidade aos "filhos da terra", principalmente aos mestiços, de ocuparem os lugares cimeiros na economia interna e na administração local. E tudo isto se passou em uma, quando muito em duas, gerações.

Assim, a sociedade dicotómica de senhor/escravo, europeu/africano progrediu para o fortalecimento de uma terceira força endógena, os "filhos da terra"' É ainda neste século que se atinge uma sociedade mais homogénea com características específicas e verdadeiramente novas: a sociedade caboverdiana.

A fragilização das relações comerciais e das ligações marítimas com o reino dá azo á afirmação de uma auto-organização interna e à introversão de uma sociedade, em que o elemento reinol era cada vez mais raro, reduzido aos representantes dos poderes administrativos, judiciais ou eclesiásticos e pouco mais. Os naturais da terra não tinham acesso ao governo central já que não possuíam aí parentes e amigos altamente colocados que lhes abrissem as portas e proporcionassem influências. Aliás, os próprios funcionários judiciais e até governadores tinham cada vez mais dificuldade em se imporem numa sociedade que não recebia atenção do governo central.

A gestão local era uma fórmula a que repetidamente se teve de lançar mão em setores tão delicados como a administração eclesiástica.

Muitas vezes os Bispos demoravam a empreender a viagem desde Lisboa até uma diocese pouco atrativa. As vagaturas chegavam a durar anos.

Para podermos compreender o ritmo acelerado e a capacidade de se auto-organizar no percurso que originou a sociedade crioula de Cabo Verde, precisamos de dar o devido peso ao aspeto religioso. Senhor e escravo, brancos e negros, homens que comiam trigo e outros que comiam milho, também professavam originalmente credos religiosos diferentes.

Uma sociedade que promoveu o filho ilegítimo do senhor e da escrava, que fez entrar na Câmara e na administração o mestiço, que uniformizou os hábitos alimentares ancestrais, que viu reduzidos os contactos exteriores a todos os habitantes, fossem urbanos ou rurais, também abraçou crenças, moldou comportamentos, envolveu os próprios ministros das religiões presentes no território.

Ali assistiu-se, em primeira mão, a uma conversão em dois sentidos: do africano ao cristianismo e a do europeu aos rituais africanos. Tratava de conversões que compreendiam uma larga margem de permanência da crença original, o que ainda facilitava mais o convívio quotidiano. Uma parte significativa da população dispunha de duas vias para o sagrado: o padre católico, representante da religião oficial dos reinóis, e o "feiticeiro", sacerdote/médico africano jabacouce apesar de não ser reconhecido pelas autoridades coloniais, era uma figura  muito presente na sociedade local.

A redução das ligações com o Reino,  o   abandono   da   cidade, enfraquecimento das estruturas institucionais civis e religiosas, a ausência de  reinóis abastados tenderam a diluir as diferenças e intensificam a mestiçagem física e cultural. Os contactos entre as religiões estreitam-se, as concessões de parte a parte tornam-se possíveis e a interpenetração dos rituais foi tolerada pelo clero, ele próprio participante das duas culturas.

A promoção do clero local representou ao nível da religião a via mais direta para a crioulização. A composição do clero caboverdiano iria refletir a mestiçagem da sociedade laica. Nas últimas décadas do século XVI, assistimos á rápida africanização do clero. Para além de constituir um meio de ascensão social, por excelência dos “filhos da terra” era também uma solução prática para compensar a falta de clérigos reinóis na diocese.

Em meados do século XVII, o traço dominante do clero caboverdiano era a sua composição mestiça e negra. O testemunho do padre António Vieira deixou para a posteridade a imagem conjuntural mais marcante de uma estrutura fora do seu tempo, estrutura essa que, noutras partes, levaria séculos a ocorrer: "Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais".

A história das ilhas de Cabo Verde é, com efeito, um terreno de grande interesse para o estudo da presença europeia, e designadamente portuguesa, nos Trópicos. Aqui tudo partiu do zero, de terreno virgem, aqui foi possível acompanhar o crescimento e o desenvolvimento de uma sociedade, da sua organização politica e da sua economia a partir do início, é sem dúvida um processo apaixonante seguir estes homens e a sua adaptação aos Trópicos desde o dia 1 da sua existência.

Autoria/Fonte

(Conferência apresentada no Ciclo de Conferências “Cabo Verde do Descobrimento à Independência”, organizado pela Associação Caboverdeana de Lisboa, 14 de maio de 2015)
Maria Manuel Ferraz Torrão
(Centro de História, IICT, Lisboa)

Notícias