Cabo Verde precisa de libertar-se dos libertadores

Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

 

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.

 

Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?
Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. Quando, em Portugal, comecei a pensar em temas para fazer uma dissertação de mestrado, ocorreu-me escrever sobre Amílcar Cabral, também influenciado um pouco por autores cabo-verdianos que escrevem sobre Cabo Verde. Porque se reparar, os melhores manuais da história de Cabo Verde foram escritos por cabo-verdianos, não por estrangeiros e isto é um dado importante, porque não acontece muito em países de Terceiro Mundo, principalmente os africanos. Cabo Verde é uma exceção. E bem. É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?
Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses. Há uma vastíssima informação sobre o PAIGC e sobre Amílcar Cabral e é uma pena que esse acervo não esteja à disposição dos cabo-verdianos em Cabo Verde. Quem quiser fazer uma investigação a sério sobre Amílcar Cabral terá forçosamente que se deslocar a Portugal ou à Guiné-Bissau, embora nesta uma parte do arquivo tenha sido destruída pela guerra, o que é uma pena. Quando se perdem arquivos, perdem-se memórias e perde-se a história.

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?
Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral. E depois há as dificuldades materiais, mais difíceis de ultrapassar, mas que não podem constituir um empecilho à vontade de investigar, de procurar, de pôr à disposição dos cabo-verdianos uma obra seja de que dimensão for.

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?
Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. Se pedimos que o investigador tenha um distanciamento em relação aos factos que investiga, da mesma forma também se pede às pessoas que detêm as informações algum distanciamento daquilo que oferecem. Sobretudo quanto à preservação continuada, intencional, de mitos que mais não têm senão o objetivo de esconder algo ou então perpetuar-se no poder. À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.
São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.
Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC.
Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?
O que aconteceu na verdade está explicado no meu livro, e antes de mim já a RDP África o tinha feito. O que fiz foi entrevistar um dirigente nacionalista são-tomense, o Tomás Medeiros, [médico e ativista político António Alves Tomás Medeiros, nasceu em São Tomé em 1931, viveu em Angola, no Gana, na Argélia e finalmente instalou-se em Portugal, onde até hoje reside], que é uma fonte de conhecimento inesgotável e que tem feito um trabalho notável para pôr à disposição de quem não presenciou os factos um conjunto de informações. Ele estava para ir a Roma, vivia na altura em Argel, e estava para ir juntamente com Agostinho Neto, da parte do MPLA, Amílcar Cabral, do PAIGC, e Marcelino dos Santos, da FRELIMO. Ele só não se deslocou porque recebeu tardiamente o bilhete de avião. Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. Portugal tornou um momento banal num grande acontecimento mediático internacional. Quem ganhou com isso foram os chamados movimentos de libertação porque isolaram diplomaticamente Portugal porque toda a imprensa mundial andou meses a noticiar o que aconteceu. Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. Se admitirem isto, a história ganhará e tirar-se-á o chapéu às pessoas que engendraram esse espetáculo mediático. Agora, insistir que foi uma audiência é uma falsificação da história, inaceitável nos dias que correm.

Mas ainda recentemente [final de junho] o Presidente da República esteve em Itália nas celebrações dos 48 anos da audiência do Papa Paulo VI aos líderes dos movimentos de libertação africanos. É a isto que se refere quando fala de perpetuação de mitos?
O Presidente da República, do meu ponto de visto, cometeu um erro crasso. Não tenho conselho a dar-lhe, mas não devia participar num acontecimento que se realizou nos termos em que é apresentado. Foi pena, e a história o que regista é o facto de um Presidente da República de um país democrático ter-se dignado a prestar-se a esse serviço. Não faz sentido. O Presidente da República deve saber, e sabe-o, que nunca houve tecnicamente uma audiência. O Papa recebeu-os, isso é indiscutível, mas não foi uma audiência. Aliás, se consultar todos os boletins da época, do MPLA, da FRELIMO, do PAIGC, nenhum traz uma foto da audiência. E eu não acredito que, tendo eles sido acompanhados por um fotógrafo, que o fotógrafo se tenha distraído a ponto de não registar uma audiência com o Papa. Volto a dizer, perpetuar esses mitos não faz sentido hoje em dia e o Presidente da República, do meu ponto de vista, cometeu um erro a todos os títulos inaceitável num homem da dimensão dele. O Presidente da República foi infeliz, numa só palavra, prestou um mau serviço à história, ao país e à democracia.
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.
Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta. Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. Se quisermos ir à história de Cabo Verde, logo após a independência do Brasil [declarada em 1822 e reconhecida em 1825] houve cá uma revolta em que alguns cabo-verdianos queriam que Cabo Verde fosse anexado ao Brasil. Dez anos depois surge uma tentativa para criar a Confederação Brasílica que pretendia juntar Cabo Verde, Angola e Moçambique ao Brasil. Quer dizer, não eram ideias independentistas, era um separatismo que visava sair de Portugal e juntarmo-nos ao Brasil, mas todas essas ideias acabam por cimentar mais tarde o ideário da independência. Como teve impacto em Cabo Verde as revoltas filipinas [1896-1898, conflito militar entre a população filipina e as autoridades coloniais espanholas e que resultou da secessão das ilhas Filipinas do império espanhol], ou a guerra dos Boers [a primeira entre 1880 e 1881 e a segunda entre 1899 e 1902, opondo colonos de origem holandesa e francesa, os chamados boers, ao exército britânico na África do Sul]. O que as autoridades portuguesas sempre quiseram evitar é que, à semelhança do Brasil, fosse um português da metrópole a proclamar a independência de uma colónia e fez tudo ao alcance, politicamente e não só, para evitar a repetição desse facto. Por exemplo, Leitão da Graça falava da independência antes de Amílcar Cabral. Amílcar Cabral só falou de independência quando regressou de Angola, quando percebeu que a vida não é só agricultura e literatura. E ele decide dar um novo rumo à vida e o resto já sabemos.

Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?
Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].
Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?
Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.
Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?
É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.
Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?
Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único. Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.
E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?
Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado.

Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

 

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.

 

Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?
Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. Quando, em Portugal, comecei a pensar em temas para fazer uma dissertação de mestrado, ocorreu-me escrever sobre Amílcar Cabral, também influenciado um pouco por autores cabo-verdianos que escrevem sobre Cabo Verde. Porque se reparar, os melhores manuais da história de Cabo Verde foram escritos por cabo-verdianos, não por estrangeiros e isto é um dado importante, porque não acontece muito em países de Terceiro Mundo, principalmente os africanos. Cabo Verde é uma exceção. E bem. É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?
Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses. Há uma vastíssima informação sobre o PAIGC e sobre Amílcar Cabral e é uma pena que esse acervo não esteja à disposição dos cabo-verdianos em Cabo Verde. Quem quiser fazer uma investigação a sério sobre Amílcar Cabral terá forçosamente que se deslocar a Portugal ou à Guiné-Bissau, embora nesta uma parte do arquivo tenha sido destruída pela guerra, o que é uma pena. Quando se perdem arquivos, perdem-se memórias e perde-se a história.

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?
Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral. E depois há as dificuldades materiais, mais difíceis de ultrapassar, mas que não podem constituir um empecilho à vontade de investigar, de procurar, de pôr à disposição dos cabo-verdianos uma obra seja de que dimensão for.

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?
Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. Se pedimos que o investigador tenha um distanciamento em relação aos factos que investiga, da mesma forma também se pede às pessoas que detêm as informações algum distanciamento daquilo que oferecem. Sobretudo quanto à preservação continuada, intencional, de mitos que mais não têm senão o objetivo de esconder algo ou então perpetuar-se no poder. À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.
São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.
Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC.
Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?
O que aconteceu na verdade está explicado no meu livro, e antes de mim já a RDP África o tinha feito. O que fiz foi entrevistar um dirigente nacionalista são-tomense, o Tomás Medeiros, [médico e ativista político António Alves Tomás Medeiros, nasceu em São Tomé em 1931, viveu em Angola, no Gana, na Argélia e finalmente instalou-se em Portugal, onde até hoje reside], que é uma fonte de conhecimento inesgotável e que tem feito um trabalho notável para pôr à disposição de quem não presenciou os factos um conjunto de informações. Ele estava para ir a Roma, vivia na altura em Argel, e estava para ir juntamente com Agostinho Neto, da parte do MPLA, Amílcar Cabral, do PAIGC, e Marcelino dos Santos, da FRELIMO. Ele só não se deslocou porque recebeu tardiamente o bilhete de avião. Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. Portugal tornou um momento banal num grande acontecimento mediático internacional. Quem ganhou com isso foram os chamados movimentos de libertação porque isolaram diplomaticamente Portugal porque toda a imprensa mundial andou meses a noticiar o que aconteceu. Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. Se admitirem isto, a história ganhará e tirar-se-á o chapéu às pessoas que engendraram esse espetáculo mediático. Agora, insistir que foi uma audiência é uma falsificação da história, inaceitável nos dias que correm.

Mas ainda recentemente [final de junho] o Presidente da República esteve em Itália nas celebrações dos 48 anos da audiência do Papa Paulo VI aos líderes dos movimentos de libertação africanos. É a isto que se refere quando fala de perpetuação de mitos?
O Presidente da República, do meu ponto de visto, cometeu um erro crasso. Não tenho conselho a dar-lhe, mas não devia participar num acontecimento que se realizou nos termos em que é apresentado. Foi pena, e a história o que regista é o facto de um Presidente da República de um país democrático ter-se dignado a prestar-se a esse serviço. Não faz sentido. O Presidente da República deve saber, e sabe-o, que nunca houve tecnicamente uma audiência. O Papa recebeu-os, isso é indiscutível, mas não foi uma audiência. Aliás, se consultar todos os boletins da época, do MPLA, da FRELIMO, do PAIGC, nenhum traz uma foto da audiência. E eu não acredito que, tendo eles sido acompanhados por um fotógrafo, que o fotógrafo se tenha distraído a ponto de não registar uma audiência com o Papa. Volto a dizer, perpetuar esses mitos não faz sentido hoje em dia e o Presidente da República, do meu ponto de vista, cometeu um erro a todos os títulos inaceitável num homem da dimensão dele. O Presidente da República foi infeliz, numa só palavra, prestou um mau serviço à história, ao país e à democracia.
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.
Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta. Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. Se quisermos ir à história de Cabo Verde, logo após a independência do Brasil [declarada em 1822 e reconhecida em 1825] houve cá uma revolta em que alguns cabo-verdianos queriam que Cabo Verde fosse anexado ao Brasil. Dez anos depois surge uma tentativa para criar a Confederação Brasílica que pretendia juntar Cabo Verde, Angola e Moçambique ao Brasil. Quer dizer, não eram ideias independentistas, era um separatismo que visava sair de Portugal e juntarmo-nos ao Brasil, mas todas essas ideias acabam por cimentar mais tarde o ideário da independência. Como teve impacto em Cabo Verde as revoltas filipinas [1896-1898, conflito militar entre a população filipina e as autoridades coloniais espanholas e que resultou da secessão das ilhas Filipinas do império espanhol], ou a guerra dos Boers [a primeira entre 1880 e 1881 e a segunda entre 1899 e 1902, opondo colonos de origem holandesa e francesa, os chamados boers, ao exército britânico na África do Sul]. O que as autoridades portuguesas sempre quiseram evitar é que, à semelhança do Brasil, fosse um português da metrópole a proclamar a independência de uma colónia e fez tudo ao alcance, politicamente e não só, para evitar a repetição desse facto. Por exemplo, Leitão da Graça falava da independência antes de Amílcar Cabral. Amílcar Cabral só falou de independência quando regressou de Angola, quando percebeu que a vida não é só agricultura e literatura. E ele decide dar um novo rumo à vida e o resto já sabemos.

Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?
Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].
Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?
Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.
Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?
É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.
Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?
Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único. Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.
E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?
Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado.

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