Há oportunidades, mas algum cuidado não faz mal a ninguém

A liberalização da circulação de capitais entrou na ordem do dia em Cabo Verde. Em Novembro, o Ministro das Finanças, Olavo Correia, num encontro com empresários portugueses na cidade do Porto, anunciava uma nova Lei Cambial que depois de entrar em vigor iria “liberalizar todos os movimentos de capitais de Cabo Verde com o exterior”. Este mês, foi a vez do Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva, durante a sua intervenção no “Horasis Global Meeting” também em Portugal, anunciar a eliminação “das barreiras administrativas à livre circulação de capitais”. Nos dias de hoje, os investidores financeiros aplicam os recursos em diversos países.

Compram acções de empresas ou títulos de governos, entre outros activos, por todo o mundo. Movimentam capitais de um país para outro em quantidades nunca vistas. Analisam rentabilidade e risco das aplicações em diversos mercados simultaneamente, 24 horas por dia, seja em Frankfurt, em Wall Street, ou na City, de Londres. As decisões dos analistas financeiros, que trabalham nesses centros, fazem com que biliões de dólares sejam retirados de um país e colocados noutro num curto espaço de tempo. Nos anos 90, fez-se enorme pressão sobre os países não-desenvolvidos e em desenvolvimento para que acompanhassem as tendências liberais dos países avançados. O culminar desta pressão foi a aprovação, na assembleia anual do Fundo Monetário Internacional de 1997, da iniciativa de mudança de estatutos para remover o artigo VI, que legitimava a adopção de instrumentos de controlo do fluxo internacional de capitais. A crise asiática, seguida pela crise russa, pelas crises brasileiras e por várias outras acabaram por fazer o movimento liberal perder parte do seu ímpeto, mas não implicou o seu retrocesso. Hoje, o FMI continua a manter o objectivo da liberalização, mas passou a reconhecer a necessidade de que algum controlo poderia ser tolerado. No entanto, estes controlos deveriam ser temporários e limitados. Para falar da liberalização de capitais, e dos desafios que isso representa para uma pequena economia, esteve em Cabo Verde o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra António Portugal. Que deu uma entrevista sobre o tema ao Expresso das Ilhas.

Veio a Cabo Verde para falar sobre a liberalização de capitais, os desafios para as pequenas economias e começava mesmo por aí, de que desafios estamos a falar?
Há desafios e há oportunidades, por isso até começaria pelas oportunidades, ou seja, pela parte mais vantajosa da liberalização de capitais. Desde logo, a liberalização de capitais é, no meu entender, uma janela de oportunidades. E é uma janela de oportunidades se bem aproveitada. A vantagem, desde logo, é que é muito mais fácil aceder a financiamento, o que faz com que seja muito mais fácil fazer a obra. Porquê? Porque o custo de capital, à partida, será muito menor. No fundo, evitam-se intermediários financeiros, o que faz com que o custo da intermediação reduza completamente. Quantos aos desafios, um dos principais é evitar destruir algum negócio já nascente. Falo da pequena economia, podemos dizer mesmo familiar. Eu não conheço bem a realidade cabo-verdiana, mas o grande perigo que aqui pode existir, se houver um fluxo excessivo de capitais, é exactamente começar a implementar-se empresas com uma dimensão que vão destruir a economia local.

A economia cabo-verdiana depende, essencialmente do turismo.
Naturalmente que a economia cabo-verdiana depende muito do turismo e neste sector o investimento directo estrangeiro, se bem canalizado, para boas infra-estruturas, pode naturalmente desenvolver, criar emprego e gerar riqueza. Também me parece que o IDE se pode substituir a algum investimento público, e nesse aspecto também tem uma vantagem que é evitar um endividamento público excessivo que agora existe. A inflação não me parece que seja um problema. Poderá ser um problema, e aqui tenho de ter algum cuidado com as palavras que vou dizer, se este fluxo de capitais for excessivo e criar liquidez excessiva. Nesse caso, terão de existir eventualmente operações de esterilização para evitar uma circulação monetária excessiva que poderá fazer, se não houver do lado da oferta um correspondente crescimento, alguma pressão sobre os preços e gerar alguma tensão inflacionista. Portanto, aqui é um desafio para a própria economia, saber gerir eventuais pressões do lado da oferta de liquidez. No geral, ponderando os prós e os contras, diria que Cabo Verde está no bom caminho, acho que terá muito mais vantagens a retirar da liberalização da conta corrente do que propriamente em manter controlo sobre os movimentos de capitais. Um perigo que poderá existir é estes capitais apresentarem-se como muito voláteis.

Ou seja, tão rapidamente entram como rapidamente saem.
Exactamente, o perigo do repatriamento ser muito rápido ao mínimo efeito de perturbação do mercado. Aqui o facto da economia cabo-verdiana ser relativamente pequena digamos que passa um pouco despercebida ao especulador internacional e este passar despercebido joga a seu favor, uma vez que o especulador não terá muito ganho em especular contra o escudo cabo-verdiano. Nesse sentido, aquilo que poderia ser um efeito perverso desta liberalização parece-me que de todo se irá colocar. Ponderando as duas realidades, eu diria que Cabo Verde está no bom caminho e deve aprofundar essa liberalização, agora caldinhos de galinha também não fazem mal a ninguém, por isso exige-se alguma precaução.

E como se deve avançar de uma forma segura?
Quando digo precaução, falo que a autoridade central tem de ter uma cultura de proximidade, uma supervisão, porque naturalmente o sistema bancário terá de se modernizar muito mais. E ao abrir-se ao exterior o país poderá atrair banca estrangeira em peso que, naturalmente, quer aproveitar bem o financiamento que concede à economia e, eventualmente, quando avaliar projectos de investimento estará mais virada para os grandes projectos e nesse aspecto o pequeno negócio, a família, o comércio, poderá passar para segundo plano. Portanto, há aqui algum perigo nesse sentido. Mas eu penso que a economia no seu todo, se houver essa regulação, uma boa gestão do recurso que passa a nascer – porque a economia cabo-verdiana não tem este recurso endogenamente, é uma economia de fraco rendimento e a poupança não existe – tem tudo para funcionar. E há um aspecto que me parece muito importante, o facto de Cabo Verde nos últimos tempos ter vindo a crescer na escala de riqueza – ter passado para um nível superior de rendimento – isto é bom porque sentimos que a economia está mais dinâmica e está na senda do desenvolvimento, contudo o elevar do seu nível de rendimento fez com que os donativos se reduzissem automaticamente e é uma fonte de financiamento externo que se perde.

Com esta liberalização, a atracção de IDE pode cobrir essa saída de financiamento?
Sim, exactamente, essa é a tal janela de oportunidades de que falo. Uma vez que Cabo Verde perdeu os donativos – já a taxa de juro ao nível do financiamento mantem-se pelo que por aí não haverá grandes problemas – esta redução pode ser claramente compensada por uma maior abertura à circulação de capitais.

A liberalização de capitais também não é uma varinha mágica, quer dizer, não se promove esta medida e o IDE começa a fluir.
Não, isto é um processo.

O que deve acompanhar esta liberalização de circulação de capitais para conseguir atrair, e fazer permanecer, o IDE?
Parece-me que é muito importante, além deste processo de liberalização de capitais, ter a modernização e abertura da própria banca a um financiamento mais próximo da família, do empresário, etc. E, à semelhança do que aconteceu com Portugal, é preciso um esforço muito grande de informar os agentes económicos, mesmo ao nível da família. Trata-se de uma realidade diferente e como em tudo na vida quando se trata de uma realidade diferente por vezes temos dificuldade em saber lidar com ela. Para não cairmos, como caiu Portugal, no endividamento excessivo é necessário alguma sensibilização, explicar às famílias que têm aqui uma grande oportunidade, por exemplo, para adquirir uma casa ou desenvolver um pequeno negócio, porque as taxas de juro serão mais baixas fruto dessa liberalização, mas o endividamento deve ser feito com atenção para não se tornar excessivo.

Quando se começou a falar da liberalização dos capitais dizia-se que isso seria bom para as economias emergentes porque haveria fluxo financeiro dos países ricos para os países pobres, mas isso não foi exactamente o que aconteceu. Hoje já estamos mais realistas em relação ao que a liberalização de capitais pode trazer, de facto, às pequenas economias?
Como disse, para pequenas economias é uma janela de oportunidades. Mais, Cabo Verde tem relações históricas com Portugal e eu acho que isto pode ser outra janela de oportunidades para estreitar ainda mais as relações que existem entre estes dois países irmãos. Aqui a economia portuguesa, se entrar numa fase diferente da que viveu nos últimos tempos e começar a crescer a um ritmo superior…

Tem aqui uma oportunidade de investimentos…
Exactamente, investimento feito por capital estrangeiro, mas também capital irmão, chamemos-lhe assim. Esse capital irmão terá menos perigo de ser de natureza mais especulativa ou com um repatriamento mais rápido. Deixe-me acrescentar um aspecto, a economia cabo-verdiana depende em quase 20% da actividade turística, obviamente esta janela de oportunidades, estes capitais que poderão fluir à economia cabo-verdiana irão ser, em grande parte, canalizados para o sector turístico. Eventualmente, também, uma aposta na diversificação do investimento seria importante fazer. Não consigo aqui encontrar uma solução mágica porque não conheço profundamente a economia cabo-verdiana, mas eventualmente ao nível do sector pesqueiro, nas infra-estruturas, na redução dos custos de deslocação, ao nível da água, da electricidade, saneamento básico, são investimentos que geram emprego, geram riqueza e são fundamentais. E pode mesmo existir investimento ao nível da educação, que me parece um recurso excelente da economia cabo-verdiana – o seu capital humano – portanto, o investimento não tem de ser obrigatoriamente na infra-estrutura física, pode ser na infra-estrutura humana, apoiando as universidades, apoiando os institutos, apoiando a formação profissional, que vai dotar o país de recursos que efectivamente podem dar um contributo.

Estamos a falar de um instrumento que se junta a uma série de outras políticas económicas que Cabo Verde está a tentar desenvolver, como por exemplo assumir-se como uma plataforma entre a Europa e África. Pensa que esta liberalização poderá facilitar esse objectivo?
Parece-me que sim. Cabo Verde está a umas 4 horas da Europa a 1 hora do continente africano, parece-me que poderá sim servir como plataforma, como entreposto comercial de grande escala, mas claro que isso é um projecto a longo prazo e tem de começar por algum lado.

Como dizíamos há pouco, só a liberalização de capitais não chega.
Por si só, não. Parece-me também que Cabo Verde, do ponto de vista político é uma economia que está estabilizada, ou seja, pode-se fazer obra, investir na economia. Existindo recursos penso que estarão criadas as condições. Penso que dentro das pequenas economias africanas, Cabo Verde está bem posicionado para, num futuro próximo, ter a economia a crescer mais do que actualmente. O próprio regime cambial, a ancoragem ao euro, permite também a estabilidade macroeconómica ao nível do câmbio, que é fundamental porque evita qualquer risco cambial, reduz os custos de transacção e diminui os níveis de incerteza junto do investidor. Porque a pior coisa que pode existir para um investidor é ser confrontado com a incerteza.

Olhando agora para o outro lado. Uma liberalização de capitais não tira um pouco a força a um governo que queira fazer as suas políticas económicas?
Pode acontecer, também não podemos ser ingénuos ao ponto de pensar que isto é um mundo só de maravilhas. Lá está, os tais caldinhos de galinha que falava. Naturalmente que o investimento estrangeiro, se for forte, poderá levar a alguma dominância de empresas. A envergadura do investimento pode fazer com que em determinadas decisões se sobreponha mais a decisão de investir à decisão política e poderá, eventualmente, enfraquecer o governo, mas isto passa também pela existência de decisores políticos capazes e fortes. E pelo que vi, eles existem em Cabo Verde. Não deixa de ser um potencial risco, mas que pode ser bastante enfraquecido com decisores que sabem o que querem fazer pelo país.

Fiz esta questão porque houve economistas que afirmaram que a liberalização de capitais em vez do esperado paraíso do pleno emprego, do crescimento sustentado e do bem-estar social foi afinal a abertura da porta para o inferno das crises.
Exactamente, como se costuma dizer o capital não tem pátria e da mesma forma que entra também vai embora. O capital procura, obviamente, obter a maior taxa de rendibilidade, onde ela existe o capital vai para lá. Naturalmente, como referi, a janela de oportunidades pode significar essa taxa de rendibilidade alta e um retorno rápido, mas da mesma forma que entra rapidamente também rapidamente pode sair. Tem que existir o ponderar de ambos os aspectos.

Quando existe esta liberalização de capitais, temos de ter entidades reguladoras fortes para que o país não se transforme num paraíso fiscal?
Isso parece-me fundamental. Penso que aqui o Banco Central como entidade reguladora tem de ter uma presença forte, com supervisão, com atitude macro prudencial e tem de regular permanentemente o sistema bancário e financeiro, caso contrário existirá, de facto, esse perigo. Se for assegurada essa supervisão, não existirão problemas de maior.

Fonte: Expresso das Ilhas

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