O turismo não pode estar de costas voltadas para as populações

O turismo sustentável é, necessariamente, um turismo inclusivo, que beneficia a todos, e que acontece respeitando vários equilíbrios: social, ambiental, económico e demográfico. Estes equilíbrios não são espontâneos e supõem o planeamento do que se pode e do que não deve ser feito, bem como, em consequência, do que se pretende fazer. Tirar partido das oportunidades é o que proporciona o bem-estar das famílias e das comunidades, a criação de emprego, a geração de oportunidades e a criação. O número de turistas que procuram a ilha de Santiago está em expansão e nos próximos anos irá assistir-se a um boom até há pouco tempo impensável. A entrevista com Eugénio Inocêncio, presidente da Associação de Turismo de Santiago.

Que turismo para Santiago?
Um turismo sustentável, um turismo que tire proveito de tudo o que existe em Santiago, quer em termos de natureza, que é muito variada e bonita, quer em termos de cultura, de história, quer em termos humanos, mas sem estragar. Um turismo que tenha uma postura de humildade em relação aquilo que nos cerca. Isto é, que dê à envolvente procurando não tirar nada. Temos defendido um turismo sustentável e inclusivo, ou seja, que beneficie as pessoas sem as forçar, as obrigar, a sair dos seus respectivos sítios.

Por isso têm defendido um turismo que obedeça a certos equilíbrios.
Nomeadamente a quatro equilíbrios que são fundamentais: o equilíbrio social, o equilíbrio ambiental, o equilíbrio económico e o equilíbrio demográfico. No fundo, que faça com que as pessoas se sintam bem e que sintam que o turismo lhes pertence. Acho que isso é muito importante e é o que vai garantir a qualidade do turismo, nomeadamente na ilha de Santiago, e que vai fazer com que os viajantes queiram vir para aqui hoje, amanhã e sempre.

Pegando nas suas palavras, uma das ideias que tem sido defendida é que Santiago quer viajantes e não turistas. O que os diferencia?
Em Cabo Verde de uma forma geral há uma percepção que há um turista que vem e que está praticamente de costas voltadas para a nossa realidade, para a nossa cultura, para as pessoas e que depois vai embora. E as pessoas aprenderam a referenciar essa espécie de hóspedes, porque no fundo é o que são, como o turista. E há o outro, que vem às nossas ilhas rurais, como é o caso de Santiago, de Santo Antão, do Fogo, ou de São Nicolau, que é diferente, é o viajante. É uma pessoa que quer ver o mundo e que quer interagir com as pessoas, onde as pessoas estão. É evidente que todos merecem o carinho, o respeito, o tratamento e a qualidade daquilo que podemos oferecer.

Ou seja, um viajante é o que procura experiências. O turismo de Santiago poderá ser esse turismo de experiências por excelência? Que no fundo, é uma tendência a que se assiste a nível mundial.
É cada vez mais isso sim. Eu acho que o turismo responde a um impulso do ser humano. Um impulso da nossa natureza. O ser humano é territorial e em certa medida o turismo canaliza esse impulso para algo que é benéfico e positivo e não agressivo. No passado, esse impulso era canalizado para a ocupação do território do outro, para as guerras. Hoje, esse impulso, maioritariamente, é canalizado para o turismo, para viajar, para conhecer, para ver o que se passa noutros sítios. Ver como é que os outros seres humanos se relacionam entre eles, como se relacionam com a natureza, inclusive como é que nos vêem a nós que estamos fora, que somos viajantes. Isso é positivo e se o turismo for planeado e se for absorvido de forma estratégica, procurando respeitar os equilíbrios que referi, é algo benéfico. Todos os países querem receber turistas, mesmo os mais desenvolvidos como os Estados Unidos da América, Singapura, Suécia, França, todos querem receber turistas, porque o turismo, no fundo, é uma forma de exportar cá dentro. É uma forma de realizar rendimentos e de criar oportunidades com os que chegam, desde que seja uma coisa organizada.

O turismo a sério em Cabo Verde começou no início do século XXI, e em 2018 começa-se a falar no turismo em Santiago. Vale mais começar tarde do que começar com um mau projecto?
O mau projecto é sempre relativo. Eu acredito que se o turismo tivesse sido planeado desde o início, como nós estamos a defender neste momento, teria sido radicalmente diferente e com menos problemas do que os que enfrentamos neste momento. Disso, não tenho alguma dúvida. Mas todas as moedas têm duas faces e também temos de dizer que aquilo que sabemos hoje e as nossas convicções sobre o turismo e aquilo que estamos dispostos a fazer hoje deve, e muito, a esse turismo que aconteceu no início. É evidente que agora podemos fazer diferente, porque fizemos o que fizemos e aprendemos, ou estamos a aprender. O que se está a tentar fazer na ilha de Santiago tem mais ou menos três anos em termos organizados. Como sabemos, o movimento associativo ligado ao turismo começou com duas associações – a PROMITUR e a UNOTUR. Essas duas instituições fundiram-se dando origem à Câmara de Turismo de Cabo Verde. Há cerca de três anos, ainda no executivo de José Maria Neves, percebemos que o governo, principalmente através da ministra do turismo Leonesa Fortes, tinha percebido que era importante abrir o turismo para as outras ilhas e nessa altura, ao nível da Câmara do Turismo, decidimos aceitar o desafio e abrir uma delegação aqui na Praia e avançar para as outras ilhas. Temos estado a trabalhar e esse trabalho tem sido benéfico. Em Santiago são já dezenas os empresários envolvidos no processo de criação da Associação de Turismo de Santiago, em todos os municípios. E há algo extraordinário que é o envolvimento dos autarcas de todos os concelhos.

Aliás, já disse que se fez um trabalho em três anos que sem os autarcas levaria sete ou oito.
Se não tivéssemos connosco os autarcas, os vereadores do turismo, e de forma empenhada, estaríamos muito mais atrasados. E isso é fundamental. Aliás, não se desenvolve um turismo sustentável e inclusivo se as câmaras municipais não estiverem envolvidas, é absolutamente impossível. Acreditamos que neste momento há uma sintonia entre dezenas de pessoas, sejam empresários, sejam autarcas, com um fio condutor. Porque há muita coisa que precisa de ser feita, mas temos de saber que vamos começar por aqui, a seguir fazer outro passo e depois outro, tudo de forma faseada e planeada.

A transformação económica do país, ou seja, o fim das ajudas externas e a aposta na produtividade, também terá contribuído para esta sensibilização das autoridades?
Para o desenvolvimento o factor humano é fundamental. O desenvolvimento não é uma questão técnica, é o envolvimento das pessoas. As pessoas têm de acreditar. Assim como o factor institucional é fundamental. Na reunião que tivemos na passada sexta-feira [dia 4 de Maio, ver artigo: Turismo sustentável e inclusivo no mundo rural] sobre o que chamamos os nossos case studies de Babosa e Vassora, assistimos a algo muito importante que é a convergência entre o factor humano – os vários empresários presentes – e o factor institucional – com a participação do senhor ministro das finanças. E essa convergência é fundamental, se não existir cada um dos factores pode estar a trabalhar para o seu lado e o resultado não aparece. É dessa convergência que nasce o click que dá origem ao desenvolvimento.

Qualidade e sustentabilidade obrigam sempre ao envolvimento das comunidades.
Sim, claro. E aqui o papel das câmaras municipais tem sido fundamental. As pessoas já estão a ser envolvidas e já estão a perceber o que estamos a fazer.

E a formação terá de ter um papel relevante.
Lógico. Em muitas casas existem jovens que ou já terminaram o liceu ou que terminaram o seu curso superior e estão sem emprego e vai ser preciso organizar a formação profissional em torno destas ideias e dirigida para aquilo que se pretende fazer, nomeadamente direccionados para os negócios que as famílias querem iniciar. Nós temos um ponto de partida, as gerações mais velhas têm uma forte componente cultural, os mais jovens beneficiaram do salto que houve no ensino cabo-verdiano. Se essa mistura for bem aproveitada dão um produto cultural turístico de grande valor.

Temos estado a falar de um lado da moeda, falemos do outro: se não houver este turismo sustentável quais são os riscos que se correm?
São imensos, mas eu acredito que já aprendemos com os nossos erros. Acho eu. E não é por acaso, como há pouco falámos, que reparou nessa diferença de conceitos entre viajante e turista. Isso significa consciência de risco, o risco de não termos um turismo sustentável e inclusivo, o que dá origem a falhas no equilíbrio demográfico, isto é, de repente temos um crescimento excessivo de alguns centros urbanos e a desertificação noutros sítios, a acumulação de frustrações várias, principalmente entre os jovens, com implicações graves ao nível da segurança. Estes são alguns dos riscos. Mas mais, penso que num país tão pequeno como o nosso, poderemos mesmo pôr em causa a nossa cabo-verdianidade. Se não fizermos um turismo sustentável e inclusivo estaremos a pôr em causa os fundamentos da nossa cultura e da nação cabo-verdiana. Porque poderemos introduzir tensões de tal forma graves que poderão pôr em perigo aquilo que somos. Por isso é que a Associação de Turismo tem estado a defender a criação de instrumentos novos.

Está a falar, por exemplo, da Sociedade de Desenvolvimento Regional de Santiago?
É urgente e fundamental. O governo pôs em consulta pública um Projecto-Lei para as sociedades de desenvolvimento regionais. Concordamos com o conteúdo desse diploma. Será uma sociedade com duas vertentes principais: o primeiro é o planeamento estratégico da ilha, o mais amplo possível e não apenas do turismo: a diferente vocação da ilha, a infra-estrutura necessária para responder a essas vocações, etc. Isso é fundamental para evitar sermos surpreendidos por coisas feitas de forma impensada. É evidente que não podemos parar a vida enquanto esperamos pelo planeamento, o que procuramos fazer é antecipar, como é o caso dos case studies, porque acreditamos que não irão colidir com o planeamento futuro. A segunda vertente, também muito importante, será a sua função para-bancária, isto é, garantias bancárias, crédito e capital de risco, fundamental para as micro e pequenas empresas. Porque as empresas que existem e os projectos de empresas que existem precisam de financiamento direccionado.

Outro dos novos instrumentos que a Associação de Turismo tem defendido é a necessidade de se criarem centrais de compras.
Fundamentais para evitarem uma economia a duas velocidades. Ou a várias velocidades que é o que acontece agora, por um lado há as empresas de turismo – hotéis, restaurantes, etc. – e depois há os sectores tradicionais que não conseguem tirar partido dessa possibilidade de colocação dos seus produtos ou dos seus serviços, quer a agricultura, quer o artesanato, quer as pescas. Daí a necessidade das centrais de compras para fazer isso. Temos estado a trocar ideias e a consolidar aquilo que, no nosso entendimento, devem ser essas centrais de compras. Tudo para evitar que amanhã tenhamos situações menos agradáveis para a economia, mas também para a nossa forma de estar.

Começamos a nossa entrevista a falar do planeamento actual, da conjuntura, no fundo. Mas estas não são ideias que já poderiam estar a funcionar há mais tempo?
Claro. A Câmara do Turismo, como disse, é um movimento associativo com mais de dez anos, e temos estado a defender estas ideias há muitos anos. De há três anos a esta parte, como também referi, percebemos que havia uma mudança e adaptámos a nossa estratégia. Neste momento qual é a ideia? Criar associações de turismo em todas as ilhas. A primeira foi em São Nicolau, depois a de Santiago, a do Fogo, da Boa Vista, a mais recente foi a do Maio. Este mês, no dia 24, irá acontecer a assembleia geral da criação da associação de turismo de Santo Antão, e iremos completar este processo nas ilhas que faltam. Depois vamos transformar a Câmara do Turismo numa federação dessas associações. Ou seja, o que estamos a fazer hoje, poderíamos tê-lo feito há dez anos. Mas é agora que é chegada a ocasião porque para desenvolver o turismo do país há que haver uma série de consensos. Porque o desenvolvimento do turismo não pode acontecer num ambiente de desconfiança entre os parceiros.

Como referiu, o factor crítico do desenvolvimento do turismo são as pessoas.
O factor humano, as entidades públicas e privadas, investidores, etc. Por exemplo, nesta reunião da passada sexta-feira estiveram vários jovens, alguns que ainda nem sequer têm projectos, têm ideias de projectos. São pessoas, dos vários pontos da ilha, que acreditam que este é o caminho. Há dez anos, essas pessoas se calhar nem sabiam que o turismo era possível e que eles poderiam ter um papel activo nesse desenvolvimento. Por isso, sim, o factor crítico é humano, o outro é o institucional. Os diversos parceiros deste processo, seja qual for o partido político, têm de acreditar que isto é possível. E neste momento já está a acontecer. Neste momento, penso eu, estão reunidas as condições para darmos o salto de forma organizada e planeada.

Estão reunidas as condições, mas também está a haver uma expansão na procura de Santiago como destino turístico. Falta a parte de começarem a deixar cá dinheiro.
A parte da oferta. O dinheiro deixa-se se houver a compra de um serviço ou de um bem. E isso quer dizer o lado da oferta. A ilha de Santiago está a receber, por ano, à volta de 80 mil turistas. Com um conjunto de projectos que já arrancaram ou que estão para arrancar, acreditamos que dentro de três anos a ilha estará a receber entre 200 mil a 300 mil turistas e dentro de 7 anos, entre 500 mil e 600 mil turistas, ou seja, irá igualar o número de turistas que o país todo recebe neste momento. O que significa o seguinte: haverá grande oportunidade de negócios, mas a oferta terá de estar preparada e a oferta estará preparada através de grandes empresas, médias empresas, pequenas empresas e empresas familiares. Fazendo com que parte do rendimento fique junto das populações e fazendo com que as populações tirem partido do turismo sem terem necessidade de migrarem para os centros urbanos. Isso é turismo sustentável e inclusivo.

Fonte: Expresso das Ilhas

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