Especialistas do Banco de Portugal não vêem vantagens na euroização da economia cabo-verdiana

Cada vez que se fala do futuro do acordo cambial, a comemorar 20 anos, a eurização é sempre uma das possibilidades em cima da mesa. E não é de hoje, apesar do tema ter surgido novamente nos últimos dias.

Apesar da moeda ser, tradicionalmente, considerada como símbolo de soberania de uma nação, com o avanço da globalização das economias tendeu-se para o enfraquecimento das moedas nacionais, senão mesmo o seu desaparecimento em certos casos, e na sequência de crises monetárias e de inflação, intensificou-se o interesse à volta da adopção do euro/dólar pelos países em desenvolvimento, como forma de serem ultrapassados problemas de instabilidade monetária e da balança de pagamentos. As duas décadas do acordo cambial estiveram na origem de um congresso internacional, que decorreu no Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais, e o Expresso das Ilhas falou com Luís Saramago e Fernando Heitor, do Banco de Portugal, que estiveram na Praia como oradores da conferência.

Uma das questões postas pelo Expresso das Ilhas foi qual o futuro do acordo cambial? Deve-se manter o actual regime ou optar pelas alternativas, sendo uma delas a euroização unilateral? Ambos os especialistas do Banco de Portugal foram taxativos: o acordo cambial funciona e não há benefícios em alterá-lo. “A generalidade dos observadores relevantes – cabo-verdianos, portugueses ou de instituições internacionais – tende a concordar que o regime vigente tem sido positivo para Cabo Verde”, diz Luís Saramago. “Do ponto de vista técnico, não parece também haver evidência significativa de que as características estruturais da economia cabo-verdiana tenham evoluído de uma forma que substancialmente desaconselhe a sua manutenção”. Já Fernando Heitor sublinha que “o regime actual tem servido bem a economia cabo-verdiana no seu processo de desenvolvimento. Na minha opinião, não houve até ao momento qualquer alteração estrutural que exija uma alteração de regime, não havendo vantagens adicionais relevantes relativamente aos outros regimes referidos”.

A dolarização/euroização foi utilizada inicialmente pelos países da América Latina para estabilizar economias que enfrentavam graves crises económicas devido a problemas de gestão da política monetária: elevadas taxas de inflação ou crises de balança de pagamentos. Quando a moeda nacional de um país, devido a altas taxas de inflação, deixa de desempenhar eficientemente as suas funções fundamentais – unidade de conta, meio de troca, reserva de valor – tendo como consequência a redução acentuada da sua procura e da sua inevitável substituição por outros activos, está-se na presença de uma crise monetária a que é necessário dar resposta.

Quando os agentes económicos, para se protegerem de eventuais depreciações e desvalorizações, convertem os seus activos em moeda estrangeira e procedem à exportação massiva de capitais provocando, com este comportamento, crises de balança de pagamentos, é necessário procurar uma solução. Aponta-se a dolarização/euroização como uma das várias soluções para dar resposta a estes problemas. Com a adopção do dólar/euro espera-se uma redução da inflação, em virtude da taxa de inflação relativamente baixa nos Estados Unidos da América (EUA) e na Zona Euro. Por outro lado, sem moeda nacional não poderá haver fortes desvalorizações, nem bruscas depreciações, reduzindo deste modo o risco de saídas massivas e inesperadas de capitais, provocadas pela ameaça de desvalorizações potenciais, e evitando crises de balança de pagamentos. A dolarização/euroização funciona neste caso como antídoto para as crises monetárias.

Os cadernos do Banco de Cabo Verde já tinham analisado a questão em 2006. Na altura, um texto de Vasco Marta defendia que avaliando as vantagens e os inconvenientes da euroização, à luz da história económica recente, do nível de integração do país no mercado internacional de capitais e do enquadramento actual da gestão da política monetária em Cabo Verde, “parece-nos que os inconvenientes ultrapassam as vantagens”. “A grande vantagem da euroização”, continua, “seria a redução do risco do país e a credibilização da sua política económica, uma vez que poderia indiciar a disponibilidade das autoridades em se comprometerem na aplicação de políticas económicas saudáveis de forma permanente. Este compromisso poderá fazer com que o mercado veja o país de forma diferente. Parece-nos, no entanto, que a credibilização das políticas económicas proporcionadas pela euroização neste momento, num país com as características de Cabo Verde, nunca será superior à dos programas de saneamento e relançamento da economia patrocinados pelo FMI e pelo Banco Mundial”.

Por outro lado, continuava Vasco Marta, “a perda dos rendimentos da seigniorage [poder que as autoridades têm de emitir moeda], da capacidade de prestamista de último recurso e a completa alienação da política monetária são principais razões para não se proceder a uma euroização unilateral da economia cabo-verdiana. Com efeito, do nosso ponto vista, a perda da seigniorage e a incapacidade de responder a choques momentâneos são custos que ultrapassam os benefícios de uma eventual euroização”.

Dolarização/Euroização

A dolarização/euroização pode assumir várias formas:
É total e completa quando uma moeda estrangeira – normalmente o dólar ou o euro – é adoptada como moeda oficial do país;
É parcial ou “de facto” quando um país conserva a sua moeda nacional, mas também permite que as transacções e pagamentos se possam realizar livremente em dólares ou em euros. Convém, no entanto, fazer referência a três tipos possíveis de dolarização: 1) dolarização dos pagamentos – quando o dólar ou o euro é utilizado principalmente como meio de pagamento; 2) dolarização do sistema financeiro – quando os nacionais residentes detêm as suas poupanças financeiras denominadas em dólares/euros; 3) dolarização do sector real da economia – quando os preços locais e os salários são fixados em dólares ou euros.

Uma forma mais amena de euroização seria a dupla circulação de euros e escudos cabo-verdianos, um dos futuros possíveis do Acordo Cambial, apesar de, como sublinha Fernando Heitor, esta já existir, se bem que de maneira informal, “não pondo em causa qualquer pilar do Acordo, funcionando apenas como facilitador de algumas trocas comerciais entre turistas e comércio local. No entanto, a circulação formal do euro como meio de pagamento oficial obrigará a uma análise sobre os seus impactos no Acordo”. Ou, como salienta Luís Saramago, “as autoridades cabo-verdianas são obviamente soberanas quanto às opções cambiais que entendam adoptar. Nos casos em que essas opções prevejam o envolvimento de outras partes, será naturalmente necessária uma análise conjunta”.

O que os especialistas do Banco de Portugal preferem realçar é que a adopção de um regime cambial de peg fixo ao euro (inicialmente o escudo português) decidido pelas autoridades cabo-verdianas permitiu estabilizar a economia em termos nominais e cambiais, condições que têm vindo a fomentar o investimento e a possibilitar o crescimento económico sustentável do país.

Além disso, o Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde permitiu dar uma credibilidade acrescida ao regime cambial unilateralmente decidido pelas autoridades cabo-verdianas, com o Estado português a colocar à disposição do Estado cabo-verdiano uma facilidade de crédito destinada a facilitar a gestão das reservas oficiais do país.

“Os principais benefícios de um regime de câmbios fixos são a diminuição ou mesmo eliminação do risco cambial (diminuindo a incerteza e, consequentemente, os custos de cobertura desse risco) e a estabilidade nominal (com a importação de uma inflação baixa)”, diz Fernando Heitor, que é também o representante do Banco de Portugal na Unidade de Acompanhamento Macroeconómico. “Um regime de câmbios fixos acarreta a perda de instrumentos de gestão macroeconómica, como a política monetária, ainda que acabe por ter um efeito disciplinador sobre a condução das políticas macroeconómicas. Aumentam também alguns riscos, como o de eventuais ataques especulativos (pouco prováveis em economias com dimensão reduzida, mas com possíveis impactos sobre as reservas cambiais) e de perda de competitividade face a outros países (ainda assim limitada em casos onde a procura das principais exportações tem factores específicos associados, como é o caso do turismo)”.

“É possível argumentar, do ponto de vista técnico, que a estabilidade nominal, efectivamente mantida − e assente na credibilidade, gradualmente conquistada – gera benefícios superiores aos que são permitidos pela autonomia na condução da política monetária”, acrescenta Luís Saramago. “Tais benefícios traduzem-se, em particular, na criação de condições mais propícias ao crescimento económico e na melhor preservação dos rendimentos das populações mais desfavorecidas (logo, mais expostas à inflação). Importa, aliás, sublinhar que a margem de manobra para a condução autónoma da política monetária é sempre muito estreita em pequenas economias abertas, sob pena de degenerar em instabilidade nominal”.

E como reforça ainda Luís Saramago, um dos pilares do Acordo de Cooperação Cambial é a existência de estruturas leves, paritariamente integradas por representantes de ambos os países, que procedem, de forma regular, a uma análise técnica dos pressupostos macroeconómicos e financeiros sobre os quais assenta a sustentabilidade do Acordo. “Essas análises luso-cabo-verdianas visam essencialmente identificar e caracterizar aspectos relevantes da situação macroeconómica, onde se inclui uma eventual chamada de atenção para possíveis fragilidades ou riscos, contribuindo assim para o bom funcionamento do ACC”.

Mantendo o actual regime, não está, no entanto, fora de hipótese um qualquer ajustamento, que é possível no plano teórico, mas sempre, dizem os especialistas do Banco de Portugal, depois de devidamente analisados pelas duas partes.

Fonte: Expresso das Ilhas

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