[Re]cortes no Tempo: O segredo é acreditar que podemos

Um dos acontecimentos mais marcantes da agenda dos estudantes é o regresso às aulas, em setembro de cada ano. Para milhares de alunos mudam-se os tempos (das tarefas, do lazer) e as vontades (doravante mais subordinadas aos rituais da escola e à orientação dos professores).

Neste contexto, Sara Almeida escreveu no Expresso das Ilhas, de 29 de agosto de 2018, o artigo Além da “média”,em diálogo com duas excelentes alunas, a Márcia Santos e a Silviane Correia, que terminaram o ensino secundário e têm “em comum, a sede de excelência e a vontade de contribuir para o progresso de Cabo Verde”. As marcas do sucesso escolar e da distinção que conseguiram (bolsas de mérito) assentam no domínio de um bom português – “sou apaixonada por livros, então todos são especiais”; na disciplina – “impor limites e metas a si própria” e na vontade – “ser persistente e acreditar em si”.

Se estes valores são conformes ao paradigma adotado no sistema educativo cabo-verdiano, que coloca o aluno no centro da aprendizagem, ocorreu-me indagar: Como se forjaram os bons alunos, antigamente, na época colonial onde pontificava uma pedagogia coerciva que impunha um ensino alheado da realidade cabo-verdiana?

Numa crónica escrita, há 59 anos, conseguimos encontrar o perfil do estudante cabo-verdiano, igualmente, marcado pela questão linguística e pela resiliência nos estudos. Convido-os a ler:

Em que posição se encontra o estudante de Cabo Verde perante esta matéria [aprender numa língua não materna]? (…) Enquanto que para o de Portugal Continental a língua corrente, quer falada quer escrita, não constitui um problema, para o deste Arquipélago é precisamente a língua nacional o grande centro em torno do qual se dispõem os maiores entraves para a transmissão e aquisição de conhecimentos que a escola lhe deve propinar. (…) Mas esta desvantagem não significa inibição, pelo contrário é a fonte de uma forte reacção que, pela forma como se manifesta e pelos fins que alcança, é do maior interesse estudar. (…)

Assim, pela força das circunstâncias, e ainda que – honra lhe seja feita – não desanime nem abrande no seu extraordinário esforço, o estudante caboverdiano ao atingir a idade da instrução secundária, não está realmente de posse da índole própria da língua portuguesa, não adquiriu aquela maleabilidade que lhe permita utilizá-la com naturalidade como meio de expressão oral ou escrita, o que se revela pela preferência dada ao crioulo no primeiro caso, e por um português pensado em crioulo no segundo.

Mas a reação não pára. A sua vontade é inabalável. (…)

Então porque disso vai tendo consciência e pelas exigências da prossecução dos estudos, a sua reacção vai sendo cada vez maior, em ordem a penetrar nos segredos da língua que o leite materno não deu, que os amigos lhe não comunicaram, que ele mal ouviu ou ouviu mal (…).

(Marques de Oliveira, “Reacções do estudante cabo-verdiano a certos fatores mesológicos I”. Cabo Verde: Boletim de Informação e Propaganda, n.º 118, julho de 1959).

Hoje como ontem, repetem-se os traços que caracterizam o sucesso educativo de muitos alunos e os tem preparados para um futuro promissor – a dedicação, a curiosidade, o impor limites e metas a si próprios, a vontade de ajudar e de retribuir o que receberam, serem persistentes e acreditarem em si.

Bom regresso às aulas!

Fonte: Expresso das Ilhas

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